A serpente sem casca
O nosso tea party impõe a pauta do atraso e aplica um golpe
branco que agrava a ineficiência do Estado e aprofunda a crise política
A
característica do ovo da serpente é a quase transparência de sua membrana, o
que permite a quem o observe, conhecendo o embrião, antever a peçonha que,
adulta, poderá picá-lo. Trata-se de bela e precisa imagem, que nos lembra, no
presente, o que o futuro nos pode ameaçar. Ao observador sempre caberá a
decisão de interromper ou não a gestação. Mas, a partir do conhecimento da
ameaça, não mais lhe será dado o direito de, amanhã, ferido o calcanhar, arguir
surpresa. Como na vida social, ao não intervir, o sujeito histórico opta pela
cumplicidade.
Ingrid
Bergman, em filme notável, descreveu a vida do pós Primeira Guerra Mundial, o
encontro da Alemanha com a República e a democracia representada pela
Constituição de Weimar, mas, igualmente, a Alemanha dos ‘loucos anos’, de
hiperinflação, fracasso industrial, desemprego, antissemitismo e xenofobia. Não
por outro motivo o denominou de O ovo da serpente. Enxergava, naqueles tempos, o
prenúncio que mais tarde conheceríamos como nazismo.
Lembro
a onda absolutista-autoritária de desrespeito aos direitos humanos, à
liberdade, que, intoxicada de violência e xenofobia, construiu a Segunda Guerra
Mundial. Vimos naquela altura a construção do nazismo, do franquismo, do
salazarismo, do stalinismo e da loucura em que se transformou o feroz império
japonês. Sabemos que preço foi pago.
O movimento social, que se propaga em ondas, muitas vezes se
processa em subterrâneos que não nos é dado pressentir. Nas vésperas do famoso
maio de 1968, Daniel Conh-Bendit reclamava da pasmaceira da vida universitária
francesa. Imprevistos foram a queda do Muro de Berlim, o suicídio da URSS e,
respeitadas as distintas proporções, as jornadas brasileiras de junho de 2013,
detonadas por aumento de alguns centavos nas passagens de ônibus em São
Paulo. Tais fatos e movimentos, alguns de caráter revolucionário, não
foram construídos. Explodiram. Hoje, antecipa o amanhã. Sem forma exata.
Nos
tristes idos de 1954, a sociedade brasileira foi despertada para um ‘mar de
lama’ que correria nos inexistentes porões do Palácio do Catete. A onda
anti-varguista era promovida por uma oposição competente tanto quanto
vituperina e inescrupulosa, que compreendia o Congresso, os partidos e,
principalmente, a imprensa, atuando em concerto. Naquele então como agora. A
deposição de Vargas passou a ser o alvo, o atentado, o grande pretexto. O
desfecho faz parte da História.
Nos
tristes idos dos anos sessenta, muitos liberais e democratas, que não haviam
lido Brecht, engrossaram os arreganhos da direita que prometia cadeia para os
comunistas e os corruptos, ‘encastelados no governo Jango’, cuja posse não
haviam conseguido impedir em 1961. Nos primeiros momentos da ditadura,
revelados seus propósitos, ainda assim nossos liberais não se sentiram ameaçados.
Mas, insaciável, o dragão devorou todos.
O
processo histórico não se move como uma equação algébrica ou uma lei da física.
Não há leis determinando os fatos. Mas seu conhecimento ilumina ao caminhante
as frentes por percorrer no presente.
Com
a conhecida imagem do ovo da serpente procuro significar que estão dadas, para
quem quiser ver, as condições para um perigoso processo de ruptura do
pacto social que possibilitou a Constituinte quase progressista de 1988,
agredida em seus aspectos mais socialmente avançados já a partir de sua
promulgação, indicando de logo a resistência dos setores conservadores. Esse
processo desconstitutivo atinge o paroxismo na atual legislatura parlamentar.
Se o Congresso que aí está legitima os atos de seus líderes – evidência clara
como a luz do sol – resta-nos a amarga indagação se esse caminhar representa
também o pensamento majoritário de nossa sociedade. Se a conclusão plausível é
pela coerência entre o pensamento social e a ação retrógrada do Congresso,
perguntar-se-á, como desafio: como explicar as transformações que revelam o
Brasil na contramão do avanço social medido a partir da redemocratização e da
da Constituição de 1988?
O País vinha, conquista após conquista, avançando numa
trilha iluminada por valores democráticos e progressistas. Um novo Brasil
parecia nascer com as vitórias eleitorais da oposição; tinha-se a sociedade
majoritariamente identificada em torno das campanhas contra a Tortura, pela
Anistia, pelas Diretas-já,
unificada na eleição indireta de Tancredo, no impeachment contra
Collor e finalmente, nas eleições e reeleições de Lula e Dilma Rousseff. E no
apoio popular a seus governos. Como explicar a crise de hoje, cujo ponto de
partida é a desconexão entre o voto que escolhe o presidente e aquele que, na
mesma eleição, preenche as cadeiras da Câmara dos Deputados? Como explicar que
o mesmo eleitorado, na mesma eleição, consagre um candidato a presidente e
eleja um Congresso que lhe será hostil?
O
que pretendo pôr de manifesto é o subterrâneo da crise política, a saber, a
falência do modelo de política e do modelo de Estado. Trata-se do fracasso do
processo político eleitoral proporcional, fundado na farsa, na manipulação do
poder econômico – que a direita quer aprofundar facilitando a contribuição
financeira de empresas nas campanhas eleitorais e no financiamento de partidos
e candidatos –, na manipulação do poder político, que distorce a vontade
eleitoral. Trata-se da exaustão do ‘presidencialismo de coalizão’. Trata-se da
necessidade de reforma de um Estado concebido para não funcionar, senão como
conservador dos interesses da classe dominante.
A
contrapartida do Estado infuncional é a incapacidade governativa, derivada do
pacto imposto pelo ‘presidencialismo de coalização’, mas é igualmente a
consequência de uma estrutura montada para impedir o fazer. Vivemos formal e
objetivamente a grande crise constituinte, que nasce com o Estado brasileiro e
a Carta outorgada de 1824.
Mas
ainda não é tudo.
Fruto
ou causa dessa ascensão conservadora, vivemos o encontro do esvaziamento da
sociedade organizada – dominada por um certo niilismo – com a crise das
instituições da República. O povo se ressente do Estado que não lhe assegura os
serviços de que carece; não se identifica com o Poder Legislativo, que só
legisla segundo os interesses dos parlamentares, e ao fim e ao cabo se sente
frágil, à míngua de direitos diante de um Judiciário incompetente, de um
‘sistema’ que só pune os pobres. Dessa sociedade não se pode esperar a defesa
da política, que jamais foi a forma de realização de seus interesses. Mas do
progresso não pode cuidar a classe dominante, beneficiária e sócia de todos os
desarranjos que contaminam a política e a coisa pública, privatizada, pois, na
medida em que fracassam os meios republicamos, crescem as negociações de
cúpula, no vértice do poder presidencial, onde se encontram líderes políticos e
os representantes do grande capital.
A
crise da política é a crise da representação que ilustra a crise constituinte,
peças da grande crise do Estado, desaparelhado para gerir a sociedade emergente
em meio à crise econômica alimentada por fatores internos e exógenos,
condicionada pelos humores políticos e financeiros da globalização, um
bem-sucedido projeto de poder das potências.
O
plano interno parece repetir os ventos que sopram das metrópoles, com o avanço
do pensamento e da prática de direita, que hoje domina a Europa, com a falência
dos partidos socialistas e comunistas e a rendição de socialdemocracia.
Aqui, com a renúncia da socialdemocracia que se transforma no baluarte do
pensamento e da ação de direita, a falência dos partidos do campo da esquerda,
o recuo do movimento social como um todo, notadamente do sindical, contido em
reivindicações econômicas. Desapareceram as lideranças liberais e os quadros de
esquerda minguam, como minguam as instituições e as lideranças da sociedade. É
nesse vácuo – e não obstante o fracasso do neoliberalismo que detonou a crise
econômica – que, lá e cá, crescem as forças da reação, do conservadorismo
e da xenofobia. Mas não só o conservadorismo político-congressual-partidário,
mas o pior de todos, o conservadorismo na sociedade.
Vínhamos
de 12 anos de relativo sucesso de uma sequência de governos de centro-esquerda,
que possibilitou a entrada de mais de 40 milhões de brasileiros na economia e
no consumo, promovendo a mais notável ascensão social da história republicana.
Hoje, esse governo sofre um cerco sem similar na história recente,
hostilizado pelos meios de comunicação, hostilizado pelo mais poderoso
partido político da República (que participa do governo e comanda sua
política...), hostilizado pelo Congresso (presidido pelo mesmo partido),
finalmente, e por tudo isso, hostilizado na ruas.
Esse quadro ensejou a realização de um ‘especioso golpe
branco’, volta a repeti-lo, de que resultou a instalação, em pleno
presidencialismo, de um ‘parlamentarismo de fato’, mostrengo híbrido que,
avançando sobre os poderes da presidência da República, agrava a ineficiência
do Estado e aprofunda a crise política. Pois, presidido por um premier comprometido
com o atraso fundamentalista de origem evangélico-pentecostal, governando
contra o Executivo, o Parlamento cria dificuldades às nossas negociações com o
governo chinês – de quem muito dependemos para sair da crise, via investimentos
em nossa infraestrutura –, cria dificuldades à nossa participação no banco de
investimentos que reúne a China e países europeus da área do euro, dificulta a
vida dos BRICS, intenta desconstituir o Mercosul e torpedeia nossa política
externa.
É o nosso tea party. No plano social, impõe
a pauta do atraso, que compreende a diminuição da menoridade penal, a
diminuição da menoridade para o ingresso no trabalho, a precarização do
trabalho, a terceirização, o armamentismo, a intolerância à livre manifestação
de crenças e credos e os diferentes tipos de discriminação.
Estamos
diante do ovo da serpente, que nos antecipa, no presente, o que o futuro no
reserva. Resta-nos enxergar as saídas que nos distanciem da premonição do que
está sendo gestado. Esse o nosso desafio.
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