A Micareta Deprimida do Impeachment
Seria normal, em uma
democracia, que a presença de centenas de milhares de pessoas nas ruas pedindo
o impeachment de um presidente da República gerasse, no dia seguinte, rumores
sobre a iminente queda do governo e comemorações efusivas dos líderes das
jornadas de protesto sobre o “sucesso” da mobilização. Mas não é isso que
estamos vendo neste 17 de agosto de 2015. Pelo contrário: nas entrelinhas dos
editoriais da grande imprensa e na média da opinião dos comentaristas de
política existe uma clara percepção de que o movimento pelo impeachment, apesar
de ainda ser grande e barulhento, perdeu o viço, desmilinguiu-se, gerando uma
situação aparentemente contraditória: o alvo dos protestos parece estar menos
incomodado com o resultado das manifestações do que aqueles que convocaram as
pessoas às ruas.
A seguir, arrisco alguns palpites sobre as
razões para este suposto contrassenso:
Perda do poder de contágio
As manifestações deste último domingo,
16 de agosto, mostraram que ao invés de ganhar adesão de setores populares
descontentes com o governo, o movimento Fora Dilma sofreu uma debandada. Ainda
que as redes sociais já sinalizassem o que estaria na avenida, manifestantes
menos engajados ou aqueles com algum histórico de ativismo na esquerda ficaram
assustados com as cenas explícitas de elitismo, agressividade, conservadorismo
e mesmo de maluquice e ignorância da primeira manifestação. Pularam fora e
passaram a acompanhar o Fla-Flu político à distância.
De março para cá, mesmo com a corrosão
da popularidade do governo, nenhum novo movimento social relevante aderiu às
marchas pelo impeachment. Apenas a oposição de direita resolveu escancarar sua
adesão aos protestos, gerando um efeito contrário ao pretendido: agora, além de
direitista, o movimento também recebe a pecha de partidário, afastando os descontentes
com o governo que são refratários a políticos e partidos. Tanto nas redes
quanto nas ruas ficou nítido que os protestos de ontem ficaram restritos a um
perfil muito específico de manifestante.
Perfil elitista e discurso de ódio
Ao analisar o perfil médio das 135 mil
pessoas que ocuparam ontem a Avenida Paulista, o Datafolha transformou em dados
estatísticos o que já se via a olho nu: homens, brancos de classe média-alta e
ideologicamente identificados com a direita compõem o modelito básico dos manifestantes.
Mas o Datafolha traz uma novidade: 70% deles tem mais de 36 anos, sendo que 40%
já passaram dos 50 anos. Não é preciso ser estatístico ou sociólogo para saber
que a esmagadora maioria da população brasileira não se encaixa nem se
identifica com este perfil.
Some-se a isso as cenas repugnantes de
gente pedindo a morte dos comunistas e hostilizando com violência física quem
pensa diferente; declamando ignorância política e desconhecimento histórico;
vociferando machismo e preconceitos de todo tipo; menosprezando os mais pobres;
glorificando torturadores e figuras execráveis de extrema-direita; gesticulando
saudações nazistas e apoiando uma intervenção militar. Tudo isso e mais um
pouco forma um retrato bastante perturbador do que passa pela cabeça desta
gente. E é justamente este perfil que torna quase impossível a adesão de
setores populares às manifestações de rua pelo impeachment.
Ausência de bandeiras populares
Não é só o perfil dos manifestantes que
restringe o alcance do movimento. A completa ausência de bandeiras que acenem
para a melhoria das condições de vida dos brasileiros também conspira contra a
neodireita que agora ocupa as ruas. Em 2013, as grandes jornadas de protestos
tiveram como pano de fundo reivindicações por mais e melhores serviços públicos
e, com isso, angariaram o apoio de amplas massas, sobretudo entre a
juventude.
Já o movimento Fora Dilma convoca o
povo às ruas tremulando uma única bandeira: a do antipetismo e, com base nela,
pedem o impeachment, agora transfigurado (talvez por reconhecimento da
correlação de forças desfavorável) em um patético e risível clamor pela
renúncia da presidente. Educação, saúde, transporte, cultura, direitos
trabalhistas, respeito à diversidade? Nenhuma dessas pautas comparece nas manifestações.
Mesmo o discurso contra a corrupção oferecido à imprensa mostra-se falso, como
veremos adiante.
Pauta sem futuro
Além de não ter outra pauta que não
seja o antipetismo, o movimento Fora Dilma, por sua própria contradição
interna, também não oferece perspectivas de futuro na arena política. Ainda que
a ampla maioria dos manifestantes se declare eleitores de Aécio Neves, nem
mesmo a entrega do poder aos tucanos surge como alternativa para os líderes do
movimento. O que fazer se Dilma deixar o governo? Qual agenda de mudanças deve
ser defendida? Quem deve compor o eventual novo governo?
São perguntas para as quais a maioria
dos manifestantes não tem resposta. Assim, sem oferecer pistas sobre o futuro,
o movimento Fora Dilma perde-se num imediatismo inconsequente, irresponsável e
sem propósito. E, mais uma vez, afasta para longe das ruas a turma que pensa e
usa o bom senso, mesmo estando de mal com o governo.
Conluio com políticos corruptos
Quem acompanha a imprensa internacional
pode ficar com a impressão que as manifestações de março, abril e agosto são
uma demonstração cabal do “saco cheio” dos brasileiros com a corrupção. Mas
como explicar para quem vê a coisa de fora que esta mesma turma que grita nas
ruas e nas redes contra a corrupção apoia o financiamento privado de campanhas
eleitorais –considerado por dez entre dez analistas como a raiz da corrupção
política no Brasil – e escale como principal aliado o presidente da Câmara dos
Deputados, denunciado no processo da Lava Jato por receber US$ 5 milhões de
propina e que é visto e sabido nos meios políticos como um corrupto notório?
A comunhão com outras figuras tão
nebulosas e enroscadas em escândalos quanto Eduardo Cunha, como os senadores
Ronaldo Caiado, Agripino Maia, Aloysio Nunes e Aécio Neves, escancara a
indignação seletiva dos manifestantes e torna ridículo o discurso pela “ética”
que as lideranças do movimento oferecem para a plateia. Na prática, estão
dizendo que corrupção é tolerável desde que seja praticada por quem os apoia.
Ridicularização dos protestos pelas redes sociais
Apesar da cumplicidade da grande mídia,
esse lodaçal de contradições e excrecências não escapa do olhar arguto de uma
parte muito influente da sociedade: os internautas e ativistas de redes
sociais. Os três principais grupos à frente das manifestações (Vem Pra Rua,
Revoltados Online e Movimento Brasil Livre) nasceram e cresceram na internet.
Sua influência nas redes sociais ainda é muito forte, mas o extremismo de suas
ideias e o paradoxo de seus atos estão os deixando isolados.
O fato da hashtag #CarnaCoxinha (usada
para desqualificar e ridicularizar as manifestações de ontem) ter alcançado o
primeiro lugar entre as palavras mais comentadas no Twitter no Brasil e o
segundo lugar no mundo - enquanto nenhuma tag contra Dilma apareceu sequer
entre as dez mais - revela que a direita está perdendo o controle da narrativa
sobre os protestos antigoverno. Muitos analistas políticos afirmam que a
consolidação de um discurso no ambiente virtual tende a se refletir no mundo
real a médio prazo.
Eis mais um motivo que ajuda a entender
o enfraquecimento gradativo do movimento Fora Dilma. Alguns colegas jornalistas
que estiveram nas ruas ontem por dever de ofício relatam que não apenas o
número de pessoas nas ruas caiu, mas também o ânimo dos manifestantes está
baixo. Não se viu nos protestos de ontem a mesma empolgação dos atos
anteriores. Apesar do caráter carnavalesco do protesto - reforçado por
dancinhas, fantasias, bonecões e trios elétricos - a micareta direitista
apresentava muitos foliões visivelmente cabisbaixos e incomodados.
Isso se deve em boa parte à
ridicularização e péssima repercussão das manifestações nas redes sociais.
Ninguém se sente motivado a ir para as ruas se este gesto não for reconhecido
como algo a favor do país e da sociedade. Não se deve duvidar que boa parte,
talvez a maioria dos manifestantes anti-Dilma, carrega, ainda que por vias
tortas, um sentimento genuíno de estar fazendo algo bom. Mas uma boa parte
deles, sobretudo suas lideranças, joga deliberadamente no time do quanto pior
melhor, de forma dissimulada, irresponsável e perigosa. Já que a mídia
empresarial, envolvida ela também com o golpe, não cumpre seu papel de
denunciar o discurso de ódio e os excessos e descaminhos antidemocráticos da
manifestação, os ativistas das redes sociais estão assumindo esta tarefa.
O governo reagiu timidamente, mas reagiu
Por fim, é preciso registrar que se as
manifestações não conseguiram colocar o governo nas cordas - e a de ontem
configurou-se, no máximo, num embate chocho - a explicação não está apenas na
pouca força demonstrada pelo desafiante à direita, de calção verde-amarelo. O
governo também soube se esquivar. Tropeçou, tomou alguns cruzados
constrangedores de direita, sangrou, perdeu uma das luvas, o calção vermelho
rasgou, o sparring foi ameaçado, mas o pugilista conseguiu ficar de pé.
Ao buscar diálogo e apoio em setores
menos incendiários da arena política, sair da toca, mostrar-se disposta a ouvir
críticas à esquerda e também (para o bem e para o mal) curvar-se a interesses
empresariais, a presidenta Dilma evitou ser nocauteada por mais uma jornada de
protestos. Resta saber se ela terá apoio, disposição e esperteza política
suficiente para aguentar firme até o último round. O gongo final está
programado para soar apenas em dezembro de 2018. Até lá, como dizem por aí, há
muita luta pela frente. E ela deve ser travada sem menosprezar o adversário mas
também sem subestimar nossa vontade e capacidade de vencê-lo.
* Cláudio Gonzalez é jornalista, editor-executivo da revista Princípios.
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