'PEC DAS DOAÇÕES PRIVADAS NÃO TEM VALOR LEGAL'
por Paulo
Moreira Leite
No
final da entrevista do ministro Marco Aurélio Mello ao Espaço Público, programa
da TV Brasil exibido nesta terça-feira, tive a certeza de haver presenciado um
depoimento histórico, em companhia dos também entrevistadores Florestan
Fernandes Junior e Felipe Recondo.
Com
a experiência de quem irá completar 25 anos de Supremo Tribunal Federal, a
entrevista de Marco Aurélio foi uma aula de 58 minutos, construída a partir de
argumentos lógicos e principios claros, na qual o ministro não perdeu a
oportunidade de confirmar uma de suas afirmações favoritas, aquela que diz que
“a coragem é a maior das virtudes.” Pela importância do entrevistado, pela
relevância dos assuntos que abordou, seu depoimento tem a força de um fato
político.
Sem
perder-se em raciocínios rebuscados e terminologia incompreensível, que
costumam atazanar aparições públicas de tantas autoridades do judiciário, Marco
Aurélio falou com firmeza e segurança a respeito de temas atuais, de alta
importância política. Perguntando sobre um possível impeachment da presidente
Dilma Rousseff, o ministro disse que não via fatos capazes de autorizar uma
investigação da presidente. Sem deixar de manifestar a vontade de que possíveis
irregularidades sejam investigadas e esclarecidas, Marco Aurélio deixou claro
que duvidava das vantagens, para o país, enfrentar um segundo impeachment desde
o retorno das eleições diretas, em 1989.
Uma
semana depois que a Câmara aprovou a PEC que autoriza as contribuições de
empresas privadas para partidos políticos, em segunda votação em 48 horas, o
ministro não teve o menor receio de encarar o assunto, talvez o mais relevante
daquela expressão (“reforma política”) que enganosamente dominou as conversas
de Brasília nas últimas semanas.
Considerando
que o artigo 60 da Constituição impede a reapresentação de uma emenda
constitucional na mesma seção legislativa, o ministro lembrou um fato ululante,
que sequer deveria ser discutido por pessoas sérias: a regra escrita na
Constituição deve prevalecer acima de outras deliberações. Em outras palavras,
a segunda votação sequer deveria ter acontecido e seu resultado não tem o menor
valor legal.
É
uma visão que dá uma perspectiva real de sucesso a uma solicitação de 64
deputados já apresentada ao STF, questionando a PEC do financiamento de
campanhas, derrotada por uma diferença de 76 votos na primeira votação. Pela
interpretação de Marco Aurélio, baseada em artigos redigidos de forma
cartesiana pelos constituintes de 1988, os festejos do rolo compressor de
Eduardo Cunha nessa matéria terão vida curta. (Ele também criticou a atitude de
Gilmar Mendes em engavetar o voto sobre o tema por um longo período. Lembrou
que os pedidos de vistas devem servir para a reflexão do magistrado e incluir
um período razoável de tempo — em vez de servir para tentativas de modificar
uma situação politica desfavorável).
Em
seu conjunto, a entrevista — que será reprisada neste domingo a partir das 23
horas — é uma oportunidade rara de compreender em profundidade um ponto de
vista que se opõe a visão hegemônica que tem sido apoiada pela maioria dos
meios de comunicação desde o julgamento da AP 470 e também sobre a Operação
Lava Jato — onde é fácil enxergar atitudes que lembram um linchamento em praça
pública, sem relação com o distanciamento e serenidade que devem acompanhar
decisões civilizadas.
Entre
seus onze pares no Supremo, Marco Aurélio é hoje o principal porta-voz do
pensamento garantista, aquele que, sem deixar de reconhecer a relevância de
punir o crime e os criminosos, coloca a defesa dos direitos e garantias
individuais como principal obrigação de todo juiz.
Durante
o regime militar, este pensamento denunciava os abusos — que incluíam a tortura
— como técnica de interrogatório de prisioneiros.
Nos
dias de hoje, a defesa dos direitos individuais inclui a condenação de abusos —
como longas prisões preventivas — destinadas a convencer prisioneiros a fazer
delações que podem diminuir suas penas, num exercício que vários especialistas
definem como tortura psicológica.
Em
2012, Marco Aurélio foi um aliado solidário de Ricardo Lewandovski em decisões
relevantes, como a defesa do desmembramento do julgamento. Ontem, respondeu a
várias questões sobre a AP 470, feitas pelos entrevistadores e também pelo
público, através das redes sociais.
O
ministro demonstrou uma satisfação — difícil de disfarrçar — por sua postura na
época, o que era inteiramente compreensível em minha opinião.
Se,
em vez de rejeitar o desmembramento por 9 votos a 2, o Supremo tivesse aceito
favorável aquela medida, poderia ter sido possível evitar o vergonhoso final
com dois pesos e duas medidas — o julgamento dos réus ligados ao Partido dos
Trabalhadores, condenados e recolhidos a Papuda para o cumprimento de suas
penas, e os acusados ligados ao PSDB, que até agora sequer receberam uma
primeira condenação.
A
entrevista ao Espaço Público foi realizada dois meses depois que o ministro
publicou um artigo chamado “Prender e Soltar”, no qual deixava claro seus
questionamentos às longas prisões preventivas em vigor em nosso sistema
prisional e também na Lava Jato. Ontem, respondendo a uma questão colocada pelo
advogado Nelio Machado, Marco Aurélio fez críticas sempre respeitosas mas
diretas ao juiz Sérgio Moro. Falando com a segurança de quem domina os próprios
argumentos e estudou demoradamete o ponto de vista adversário, fez ressalvas às
delações premiadas, lembrando que o depoimento de um co-réu mais pode ser visto
como única prova para sustentar uma acusação criminal. Marco Aurélio deixou
claro ter sérias dúvidas sobre o destino das acusações quando forem examinadas
por tribunais superiores, inclusive pelo STF.
O
ministro ainda lembrou um ponto de princípio do Estado de Direito, que determina
a separação entre o trabalho de investigar, acusar e julgar, para deixar claro
seu inconformismo com a supremacia do Ministério Público, que comanda a
investigação e depois faz a acusação. Empregando o bom senso que alimenta boa
parte de seus argumentos, Marco Aurélio recordou um aspecto óbvio: por mais bem
intencionado que seja, o sujeito encarregado de montar uma acusação está
condenado a dirigir uma investigação — que deveria ser neutra e isenta — para
seus propósitos finais.
Claro
que, na condição de apresentador do Espaço Público, sou suspeito para falar.
Mas duvido que seja possível negar que Marco Aurélio Mello produziu 58 minutos
imperdíveis sobre Direito, Justiça e Cidadania.
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